sábado

Quarta-feia, 1 de Fevereiro de 2012

Autobiografia de Nicolae Ceausescu

um filme de Andrei UjicaSinopse:

No decurso do julgamento sumário a que foi submetido juntamente com a esposa, Nicolae Ceausescu revê a sua longa estadia no poder: 1965-1989. Trata-se de um quadro histórico que, na sua abrangência, se assemelha aos frescos do cinema Americano, como é o caso daqueles que abordam a Guerra do Vietname.

Andrei Ujica vasculhou mais de mil horas de imagens de arquivo e trabalhou durante quatro anos para fazer este filme. A partir de vídeos oficiais e privados, idealizados pelo próprio ditador romeno, o realizador traça um fascinante percurso de ascensão e queda de Nicolae Ceausescu.
Ficha Técnica: Realização - Andrei Ujica | Produtor - Velvet Moraru | Argumento - Andrei Ujica | Imagem - Vivi Dragan Vasile RSC |
Música - Dana Bunescu | Montagem - Dana Bunescu

Título Original / Internacional: Autobiography of Nicolae Ceausescu
Ano de Produção: 2010
País: Roménia
Género: Documentário
Duração : 180´
Data de estreia em Portugal : 25-08-2011
Características : Cor e Preto e Branco,1.85:1,5.1 Dolby Dig

um texto de José Manuel Martins complementa hoje este filme.

1. Não é só a de Ceausescu. É uma autobiografia, por assim dizer... geral.

2. Pessoa dizia ser de baixo estrato, a ironia de Eça: tresanda a ironia. A verdadeira ironia é a que não acusa o menor vestígio de o ser: e dá o exemplo de Swift.

Assim esta autobiografia: tudo nela é a glorificação de Ceausescu - até à asfixia.

3. Mas há dois ou três pormenores de suplementação quase inaparente:

a) a figura do velho comunista, entronizador da primeira hora do príncipe, que se lhe opõe sozinho na segunda. É impressionante assistir a três coisas, nessa cena morta ao vivo: ao unanimismo do colectivo (será tão reaccionário assim o 'colectivo Borg', do Star Treck da Guerra Fria?); à coragem idiota do idiota originário que mantém a idiotia ao mudá-la, como se nunca tivesse percebido nada e fizesse de herói pseudo-trágico mais ingénuo da segunda vez que da primeira; e à oposição grotesca dos dois momentos, tão falso um como o outro, na sua ridícula relação em espelho: o do 'colectivismo' e o do 'individualismo';

b) o declínio da estrela do regime, que Ujica acentua até à sujidade da cor e da luz com que acompanha crepuscularmente os últimos grandes estaleiros socialistas das construções megalómanas, e até à patente aversão da população às visitas paternalistas do seu conducator (a prelecção sobre a qualidade do pão na incursão à padaria socialista, é digna de um sketch dos Monty Python);

c) o efeito de mentira absoluta de todo o percurso em saga do socialismo Ceausescu, quando revisto implacavelmente a partir do fim como história retrospectiva que se desmente a si própria (e que faz com que saibamos a cada momento que tudo aquilo é já mentira; e, polemizemos aqui contra Sartre: este pessimismo da retrospecção não falseia o verdadeiro acontecimento, que teria lugar desde a liberdade e até ao futuro - o verdadeiro acontecimento histórico é a verdade concluída do seu processo, não o processo vistosamente in fieri da sua verdade: é a fatal objectividade da razão histórica, não o voluntarismo fanático da subjectividade).

4. E, todavia, depois de tudo isto, é impossível não ficar viciado em Ceausescu (não se trata de o detestar ou de o admirar), e de acreditar na sua fé de louco inabalável. Não é o seu verbo que é fascinante - mas a obliquidade imponderável que surte entre um certo ar distraído seu e esse verbo inextinguível, entre o seu aspecto um pouco alvar e o inesperado ímpeto incansável da sua convicção de - em plena acepção do termo - grande ditador: aquele cujo dizer dita a realidade.

De tal maneira que aquilo que sabemos ter sido a grande mentira, ainda hoje sentimos como verdade galvânica. O filme perpétuo de regime com que, como nas igrejas, o transcendente nos é dado em comunhão enquanto imagem ininterrupta, é uma propaganda sobre a propaganda (na qual o próprio Ceausescu performer de stand up policy já se constituía em primeira mão): mas é esta última que nos convence. A verdadeira propaganda é a absoluta independência da realidade: não serve para nos convencer acerca da realidade, mas em vez da realidade, por mais que a saibamos e por mais que não nos iludamos. Não a mascara: limita-se a dar baixa dela na sua presença, como quem a olhasse nos olhos e ao mesmo tempo baixasse os seus.

5. É o exemplo máximo do cinema como nada mais do que a montagem: a transformação das imagens em filme, ou da hagiografia em autobiografia, ao serem postas no contexto 'história da Roménia' e 'narrativa da vida de Nicolae Ceausescu'. Nenhuma palavra ou perspectiva são acrescentadas, e no entanto é o próprio afluxo de imagens que entra em perspectiva e passa a constituir, por si só, palavra.

Bom filme, e bom Ceausescu.

(Terribly nice chap, in some weird way).

Devo dizer que não conheço frescos que 'abranjam a guerra do vietnam', muito menos 'frescos americanos', muito menos entendo em que sentido um fresco que abranja uma guerra equivalha a um fresco que abranja uma... longa, longa paz.

Soa ao tique de compensação política do 'não são só estes os maus'. Alguém conhece o Ujica americano que tenha tornado em filme mil horas de captação de imagem da guerra do vietnam? Que tenha usado imagens oficiais de regime como modo de destruir o regime, sufocado na insustentável ironia da sua tautologia?

De que falamos, e por que falamos? A que exemplo aludimos - quando nenhum há, e muito menos aproximável do trabalho ímpar de Ujica (que não é um documentário, não pertence ao documentário e não converte em documentário - precisamente quando, e porque, é de uma ficção soberba que ele se ocupa)?

Seja indicado um só desses 'frescos do cinema americano' a que Autobiografia de Nicolae Ceausescu 'se assemelha'.

A tal ponto Ceausescu autobiográfico é incómodo!...

O que é brutalmente chato neste filme é que dele não se pode dizer 'eu não vejo filmes desses'; porque a razão por que não se vêem filmes desses é... filmes desses. Este filme é a coalescência do que nele é pró e do que nele é contra.

Talvez por isso, tal como só quem adore ver este filme por isso detesta vê-lo, só quem deteste vê-lo o adore.

O cinema é uma realidade perigosa e inversa.

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